domingo, 7 de outubro de 2007

Rifa-se um coração.

Rifa-se um coração. Um coração idealista. Um coração como poucos. Um coração à moda antiga. Um coração moleque. Que insiste em pregar peças no seu usuário. Rifa-se um coração que, na realidade, está pouco usado. Meio calejado, meio machucado e que teima em alimentar sonhos e cultivar ilusões. Um pouco inconseqüente que nunca desiste. Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia estava certo quando escreveu: "Não quero dinheiro, quero amor sincero, isso é que eu espero!" Um idealista, um verdadeiro sonhador. Rifa-se um coração que nunca aprende, que não endurece e mantém sempre viva a esperança de ser feliz sendo simples e natural. Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. Esse coração que erra, que briga, se expõe, perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. Sai do sério e, às vezes, revê suas posições arrependido de palavras e gestos. Este coração tantas vezes incompreendido. Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo. Um coração para ser alugado ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. Um coração abastado indicado apenas para quem quer viver intensamente. E, contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida defendendo-se das emoções. Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. Um coração que, quando parar de bater, ouvirá seu usuário dizer: "O senhor pode conferir, eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento, só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança, que insiste em não endurecer se recusa a envelhecer." Rifa-se um coração ou até mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo, um órgão fiel ao seu usuário. Um "amigo do peito" que não maltrate tanto o ser que o abriga. Um coração que não seja tão inconseqüente. Rifa-se um coração cego, surdo, mudo mas que incomoda um bocado. Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado. Provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais por não querer perder o estilo. Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. Um simples coração humano, um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado, um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar. Uma vez por outra constrange o corpo que domina. Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e a ter a petulância de se aventurar como poeta.

Clarice Lispector

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